30 de julho de 2010

Sobre velharia: Desordem Progressiva.

Eu ainda possuo um toca fitas K7. Tenho uma pequena coleção de fitas demo, amealhada em fins dos anos 90, nada demais, uns 30 títulos. Época em que era fácil acompanhar o que saía do forno em Goiânia, pois gravar e soltar um material era coisa que poucas bandas faziam. Lançar LP ou CD então, era quase um épico.

Sinto-me em um momento de transição, e tenho certeza que grande parte dos roqueiros desta cidade compartilha disso, caso sejam membros da fatia trintona/quarentona de nossa classe. Eu gravei materiais com o Ímpeto há uma década que foram literalmente descartados pela imensa falta de qualidade no resultado obtido. Não me refiro ao óbvio, a falta de qualidade técnica/musical dos integrantes, que é parte da nossa proposta. Me refiro à péssima qualidade da aparelhagem de gravação. Gravar uma demonstração do trabalho exigia demais financeiramente. No máximo dois ou três locais em Goiânia faziam jus ao título de “estúdio”. Enfim, era então se contentar com as gravações de ensaio, que apenas davam uma idéia de como seria o trabalho das bandas. As gráficas, em sua esmagadora maioria, trabalhavam com máquinas antigas e caras, o que impossibilitava um bom resultado na arte das capas das fitas cassete. Programas de arte e design para computadores caseiros eram somente mitos vistos em filmes de ficção. Eu já comentei sobre isso por aqui.

E você me pergunta: tens saudades desta época, no sentido de ter sido mais suado o trabalho das bandas? Eu te digo: JAMAIS! Viva essa parafernália tecnológica, que permite fazer uma gravação relativamente decente dentro do próprio quarto! Esse avanço tecnológico é uma vitória.

Puxei uma das caixas de sapato em que guardo as fitinhas, respirei um pouco de poeira, metido numa nostalgia miserável de uma tarde de domingo. Escutei coisas que há mais de 10 anos eu não ouvia. Coisa boa e coisa que hoje eu ouço e penso: porque diabos eu comprei essa porcaria?

Já na noite daquele que seria mais um domingo caseiro, reencontrei a fita do Desordem Progressiva. “Você gosta disso”, me disseram os sentidos, embora eu já não me lembrasse dos sons. Pareceu coisa pensada: neste domingo de julho, tão cheio de nostalgia, tristezinha e suicídio a conta gotas, com cerveja barata em lata e fritura, muita fritura, reencontrar o Desordem Progressiva. Vento e sequidão, árvores desfolhadas... só me faltou óculos de aro grosso, um exemplar de um autor francês obscuro e pronto, eu seria um autêntico indie. Provocações infantis à parte, o trabalho deles é algo que merece ser relembrado. Minha esposa e eu precisávamos de uma janta de verdade, não agüentávamos mais batata frita. Resolvi mostrar a ela o som do Desordem e um peixe que eu ensaiava preparar há alguns dias.

Você conhece pirarara? É uma das carnes de peixe mais saborosas que já comi. Tive o prazer de conhecer e degustá-la bem fresca, no alto Araguaia, Araguatins (TO), ano passado. O peixe mede mais de metro e pesa como um homem adulto. Carne abundante. O que preparei aqui também estava fresco, e sempre que você for pensar em comer peixe, tenha isso como regra. As postas têm em média mais de 30 cm de diâmetro. Limpe a peça, reduza a quantidade de gordura, já que este é um peixe de abundante manteiga, mantenha o couro só se for de seu agrado, prepare cubos grandes, lave-os com limão e tempere com sal e o que mais seu paladar gostar. Carne de peixe absorve muito bem o tempero, então cuidado ao dosar. A vantagem da pirarara é ser uma carne firme. Trabalhá-la é fácil.

A minha fita do Desordem Progressiva é velha, tem 11 anos de idade. Então, qualidade de som, necas. Mesmo assim, enquanto me livro desse cheirinho de peixe e tempero entre meus dedos, escuto o trabalho. Enquadrei a danada na vitrola. E deixei os camaradas tocarem.

Mil referências ocorrem, que juntas acabam dando um quê autêntico, melancólico, assim como estava meu dia. Lembra brit rock, indie rock (como gostam de chamar hoje), pop, sei lá. Sou avesso a resumir trabalhos em uma simples escola de rock, embora o faça com certa freqüência. É sem querer, eu juro. Cantam em um bom português, o que eu considero um mérito, com letras de uma poesia adolescente, ingênua às vezes.

Foi curioso, esse trabalho me deu uma vontade grande de beber vinho, neste dia. Lembrei que esse tipo de som cria atmosferas interessantes, principalmente quando se está acompanhado. E o vinho é um excelente estimulante para estas ocasiões. Eu não ligo a mínima para convenções gastronômicas. Como e bebo aquilo que eu penso ser bom. Sou guiado completamente pelo meu paladar. Estou me lixando se para alguns, não “harmonizo” minhas refeições. Vinho tinto e peixe, aqui vamos nós. A vinícola portuguesa Messias tem rótulos para o dia-a-dia, e obedece aos padrões de qualidade europeus, como a “denominação de origem”, que te indica por exemplo o tipo de uva, solo e clima usados no fabrico do vinho. Eu tinha uma garrafa de Messias Bairrada, e ela nos serviu perfeitamente. Custou módicas dezenas de reais. Ultimamente, os vinhos portugueses são meus prediletos. Já havia lido sobre este vinho por aí, então eu sabia o que esperar. Cotidiano, mas gostoso. Nada para ficar fungando, rodopiando no copo, analisando no microscópio ou procurando uma leve nota de terra preta. Bom tanino.

A capa da demo tape, numa resolução digna de impressoras caseiras de 99, em cores, trás um cenário de outono, bem aos moldes de bandas deste universo: chão coberto de folhas secas, árvores esquálidas ao fundo. Não há um projeto gráfico, é bem “faça você mesmo”. Minha memória tem estado cada vez pior, mas tenho certeza de ter visto algo do Desordem Progressiva em CD-r. Eu não adquiri, somente a K-7.

As boas melodias são bem povoadas por duas guitarras cruas e sem muitos efeitos, que trabalham bem as oitavas, e um baixo que marca bem grave, sem virtuosismo algum, mas competente dentro da proposta estética da banda. A bateria é só um acompanhamento, reta, sem nenhuma “firula”, às vezes deveras simples, também atendendo ao que se exige dentro deste tipo de som. Os vocais, ora afinados, ora forçando a barra, não conseguem atingir os timbres necessários para a atmosfera criada. Seguram a onda e não comprometem. E não é que é massa demais o conjunto da obra? Soa garageiro, sincero. Cara, não sei se o leitor que conheceu o trabalho vai concordar comigo, mas a fita me lembra muito o Oasis antes de estourar, ali daquele EP “See the sun”. Soa como outras bandas inglesas do início dos 90. Isso é apenas uma impressão minha, e posso até estar ofendendo a banda sem saber. Sim, eu gosto de Oasis, e daí? Já conversamos sobre isso.

“Garoto Voador” inicia o trabalho levantando a questão da geração sem sonhos nascida a partir dos anos 80. E não se oferece uma verdade sobre esses garotos sem ideais. A letra lembra muito frases de fundo de caderno, que eram trocadas com a menina da qual estávamos afim no colégio. Depois de “9 de novembro”, uma alusão ao Muro de Berlim e todo o universo político que o tema envolve, temos “O Dia”: uma balada indie com jeito de banda inglesa lado B e letra sobre desilusão tanto no amor quanto nos outros humanos. Aqui, a voz de Fábio deixa a desejar. Mas eu acabo gostando dessa fronteira não muito nítida entre o técnico e o “mal-feito de propósito”. Não sei se era o caso, o objetivo da banda, mas assim eu vejo. E me agrada.

Fritar o peixe em bom azeite numa frigideira com bordas altas, até dourá-lo e firmar mais a carne, é tarefa fácil e cheirosa. Depois disso, separe as postas, e na mesma panela, frite umas tiras de bacon bem limpinhas (sem pele e magras), cebola, alho, junte tomate sem pele e miolo em cubos pequenos, uns pimentões coloridos (vermelho, amarelo e verde), e dê andamento.

Há um som nessa fitinha com uma pegada mais forte: “Lívido”. Temática já apresentada em outros sons – relacionamentos desencontrados – a música tem um riff que gruda na memória. Em nenhum momento do trabalho há solos elaborados demais, e muito, mas muito trabalho com escalas diferenciadas das duas guitarras. Não é inovador, mas é bem feito. Bem visível em “Por uma causa”, minha música favorita na fitinha.

Tomate e pimentão são sinônimos de água, caldo, líquido. Mas observe se às vezes não será necessário acrescentar mais um pouco disso. Se você está usando um fogão onde a chama é muito raivosa, é bom acompanhar de perto, pra não deixar o refogado secar, ou pior, queimar. Depois que o negócio estiver “firmeza”, com aquela cara bonita e sorridente, traga o peixe pra se divertir ali. Socialize a rapaziada, coloque-os para bater um papo. Diga a eles que o som que vem da sala é de qualidade. Traga os camaradas do cheiro verde bem picados e meio caldo de camarão amassado, para diluir mais rápido. Quem sabe algumas alcaparras? Ou azeitonas pretas, obviamente descaroçadas? Por observação de campo, te digo que ambos, bolinhas verdes e pretas na mesma panela, desandam. Prove o sal dessa galera toda, e faça os ajustes. Seus vizinhos estarão numa puta inveja do perfume que emana da sua casa agora. Isso não é legal? É diversão garantida.

A fita do Desordem Progressiva acaba com o som “Perdidos no Tempo”, que eu não pude sacar. Meu toca-fitas deu pau. Pra falar a verdade, ao virá-la no meu velho Philips, ouvi a rotação diminuindo. Mas por não manusear um toca-fitas há um bom tempo, acabei me esquecendo que isso era sinal de fita embolada. Nada que uma Bic e paciência não resolva, depois de comer, é lógico.

Eu juntei um arroz branquinho previamente cozido nessa panela aí, pra brincar um pouco de paella. Se você tiver o arroz próprio para o preparo desta iguaria, eu recomendo, viu? Com o nosso arroz tipo 1 de qualidade, não é a mesma coisa não. Fica muito gostoso, é verdade. Mas não saia por aí dizendo que já comeu paella. Inclusive, nem é essa a intenção das dicas aí de cima, beleza? Em tempo: o vinho tinto Messias Bairrada é uma porrada, mas o prato segura a onda pelo excesso “do bem” de tempero. Andaram de mãos dadas numa boa.

Tive uma “rápida amizade” com o Júnior, baixista da banda. Ensaiei no estúdio do Desordem por quase um ano, ali na rua 68, no Centrão. Pessoa tranqüila, que gostava de quebrar um galho, tinha a parcimônia de ouvir o Kundaline e ainda incentivar, ali pelos idos de 99 e 2000. Enquanto sorvo o vinho, o filme passa nítido na minha cabeça: foram legais aqueles tempos. Não se falava em profissionalismo com tanta freqüência, assim como hoje. A grande maioria destas bandas ditas indies tocava talvez pra satisfazer o ego, imitando seus ídolos do rock. Pelo que me consta, as críticas da época em relação ao Desordem Progressiva se baseavam no fato de eles se encontrarem no limiar de um som quase profissional e um som sem pretensões, mas bem feito. Eram acusados de não serem profissionais o bastante e deveras trampado para ser informal. Isso posto de lado, recomendo que você procure ouvir. Foi uma das boas bandas daquela safra do fim dos 90. Made in Cantoria, nos “Domingões da Brodagem”. Tocaram em alguns festivais maiores, e mais uma vez vou confiar nessa memória torta minha: estiveram em uma edição do Noise e/ou Bananada. Depois que a banda se desfez, perdi o contato completamente com os caras. E como eu não era parte desta galera do rock indie pequizeiro, não sei te falar o que houve ao certo. Eu vi algumas apresentações da banda, e gostei muito. Não os vejo pelos rocks da vida. Gostaria muito de os encontrar e pedir permissão para digitalizar a fita demo deles. Compartilhar o som do Desordem Progressiva com quem não conhece e gosta do estilo, é uma obrigação. Fique no aguardo, quem sabe um dia esta fita não aparece por aqui...

E vinho bom é outra história. O prazer proporcionado à alma é tão grande, que a ressaca não tem coragem de aparecer no outro dia.

12 de julho de 2010

A Velha Guarda na ativa: Underground Forces e Mortuário no fim de semana.

A Copa do Mundo não me empolgou mais depois das derrotas do Brasil para a Holanda nas quartas, e da Alemanha para a Espanha, na semifinal. Esta última eu considero a maior injustiça do campeonato. Na minha opinião de torcedor, ganhou o caneco uma seleção de futebol medíocre, que em momento algum despertou brilho neste olhar aqui. Sim, está certo que o futebol alemão nunca foi técnico e bonito, mas é de longe a melhor aplicação tática do mundo, e isso é gostoso de ver. Acrescento que, nesta Copa, eles ainda contaram com talentos individuais que trouxeram leveza ao jogo deles. Algo que faltou aos montes do lado verde-amarelo. Dunga e seus selecionados foram longe até demais frente ao futebol pobre, medroso e burocrático que jogaram. E essa é a graça do futebol: nem sempre ganha quem a gente quer. Quando me lembrei do jogo final, passavam 30 minutos do primeiro tempo. E tamanha foi a modorra que ele me proporcionou, que preferi rever pela milésima vez um episódio de Law & Order, temporada 2009. Muito mais interessante.

Na primeira parte do domingo de ressaca, procedemos a recuperação física pós-Underground Forces, no Old Stúdio. Puta evento massa na nova casa do Marcelão. O underground goianiense passou todo ali, e se há alguém que pode narrar parte considerável desta história, é aquele polaco gente fina. Torço aqui para que vingue esse novo espaço. Natal e Segundo estiveram na retaguarda do evento, que contou com All Torment, Old Place, Golpe de Foice e Tirei Zero no “palco”. Não tinha cara de “show”, na acepção da palavra (envolvendo uma produção, voltada ao público, interessada em retorno, enfim...). O lance foi algo semelhante à uma festa de amigos e chegados. Ou as “duas coisas”, como diria Chiquinha Maria Antonieta de las Nieves.

Comprei dois novos discos na banca da Two Beers, que marcava presença lá no Old Stúdio. Lançamentos goianos, ambos: O EP independente da banda de Formosa, Golpe de Foice, intitulado “Câncer da Terra”, que havia sido recomendada dantes. E a patada da capital – Mortuário, “Vidro na Cara”, lançado pelo selo dono da banquinha. Ao assistir a apresentação dos moços de Formosa, as referências imediatas são do mais puro grind core. Você se lembra de Disrupt, Extreme Noise Terror, Napalm Death das antigas. E se você é apreciador de boas canções do gênero, assim como este aqui que segura a pena do lado oposto do monitor, entendeu que é coisa fina de se ver/ouvir. O fôlego do baterista é irritante para alguém que, assim como eu, mal consegue subir as escadas do prédio onde mora. Sobre o disquinho, gravação caseira de boa qualidade, projeto gráfico pouco audacioso que muito lembra as demo tapes dos anos 80 e 90, tudo em preto e branco. Temas recorrentes ao universo punk hardcore em letras que primam pela simplicidade. Mensagens diretas: condenação de emos (parênteses para deixar aqui meu estranhamento com a letra, por ser pobre, preconceituosa e incitar a violência gratuita), anticlericalismo, degeneração da raça humana, crítica à politicagem, anarquismo e “canibalismo social”. Seis sons próprios e um “cover” de Extreme Noise Terror. Riffs e bases rápidas bem sacadas. Eu sei que vou ouvir mais vezes, apesar dos pesares. Meus anos de radicalismo ficaram pra trás, mesmo eu não sabendo se isso é de todo bom ou ruim.

Eu assisti aos shows de metal. Aliás, a idéia era essa por parte dos organizadores: tentar promover a famigerada “união” da galera hardcore punk com metaleiros (nossa, me senti nos anos 80 usando esses rótulos! he, he, he...). Se vai dar certo, eu não sei. É esforço antigo. Veremos. Gostei do All Torment, achei bacana. O Old Place teve sua audição prejudicada pelos beborríveis presentes, que não me deixaram sacar direito a banda. Pena, pois eu estava muito interessado em conhecer. Farofeiros de Goiânia, uni-vos!

Deixamos o evento após o show do Tirei Zero, banda da qual faço parte, tocando guitarra. Cansados, minha esposa e eu. Dali, apeamos no “nosso” bar, tomamos uma breja e um caldo. Caldo de fim de noite é sagrado para garantir o dia seguinte. Taí uma dica para os iniciantes na carreira etílica.

Recuperados do rolê no dia seguinte, ficamos em casa mesmo. Uma boa carne frita, coxão mole limpo de gordura, fatiado em tiras. “Nosso” açougueiro não cobra a limpeza, pesando a carne sem a gordura. Já vi alguns que só eliminam totalmente a manteiga após pesarem a peça. Fique esperto, pois isso é ilegal. Bem acebolada, com muito alho, uma pequena e charmosa dose de pimenta do reino. E nós gostamos de shoyu, apenas para aplacar parte do possível azedume da cebola. Pouco também, algumas gotas. Escolher bem a “matéria-prima” é o único truque para comer bem. Carne fresca, limpa e bem temperada, cortada respeitando a disposição das fibras, frita em bom azeite. Sucesso.

A Bohemia de hoje não é a mesma de 15 anos atrás. Você, eu e as pedras de Pirenópolis sabemos disso. Não sei exatamente quando isso ocorreu. Mas está cada vez menos interessante pagar mais por um produto que já não tem o diferencial frente aos demais similares no mercado. O lúpulo que dava o sabor característico à marca está menos proeminente. E venho observando esta queda qualitativa não só na pilsen que tomei neste domingo. Desonesto, desestimulante. Até mesmo o aroma foi prejudicado. Há uma década, identificava-se Bohemia pelo olfato. Acredite, jovem bebedor.

Mesmo assim, no copo próprio, que se encontra em muitos lugares por aí, a espuma continua cremosa. Das pilsens nacionais de larga escala, é de longe a melhor e mais saborosa. E ainda combina com a nossa carne frita. E serviu para regar a audiência do disco do Mortuário. Bolachinha na bandeja do toca CD, Dri na cama para uma soneca pós-almoço. Pra ela, é pedir demais. Tímpanos sensíveis.

Ao abrir a caixinha, tem-se um projeto gráfico legal, que pretende acompanhar a proposta do trabalho da banda. Discreto e obscuro o encarte. Evoca-se sangue, barulho, confusão mental, referências políticas. Porco e Bush: par bem casado. Linkado com o som de abertura do disco, “Bagdah”. Excelente introdução temática, com uma produção dando ênfase ao peso do som: guitarras cruas saltam aos ouvidos. Riffs rápidos e solos bem montados. “Boca Suja” vem com um riff muito foda de introdução também, continuando o tom da primeira música, numa levada death metal. O vocal do Aurélio é assustador durante todo o disco. Daqui do alto da prepotência do meu gosto musical, eu não gostei das intervenções de vocal do Foca, assim como eu não gosto ao vivo. “Vidro na cara” trás uma introdução massa assim como as duas primeiras, old school mesmo. Há um riff no meio da música que lembra Sepultura do Arise ou Beneath the Remains. E meu medo é que isso não soe como elogio, vai saber, né? A porradaria agressiva, suja, descrente de inúmeros valores sociais, continua em “O Seu Pior”. Tenho receio em sair carimbando trabalhos alheios com rótulos indesejáveis, mas o lance é mesmo um death metal com pitadas de hardcore metal. Pesado e consistente. O tímpano fica completamente preenchido o tempo todo.


A partir de “Camburão Negão”, passando por “Barriga” e indo até “Porcaria”, percebemos uma queda de fôlego, de inovação. Os sons ficam menos elaborados, mais crus. Tem-se a impressão de que os três sons são na verdade um só. Talvez (e põe talvez nisso, pois aqui neste blog o lance gira em torno do achismo mesmo...) falte tons diferentes de música para música. Os riffs são bem trabalhados, rápidos, mas em certo ponto enjoam.

A retomada veio em “Mendigo”. Solos que lembram muito, mas muito mesmo bandas thrash metal oitentistas. “Pinga no Garrafão” (com uma homenagem ao lendário Marcão) e “Verme” encerram o festival de sarcasmos, ironias e descrença com convenções sociais que são destilados neste disco. Bem pensadas para o final, trazem elementos que espantam de vez a pequena monotonia do meio do trabalho. O “gran finale”, com um arranjo bonito de percussão, ficou diferente, minimalista diria eu, he, he, he...

E é lógico que meu leitor sabe que impressões pessoais são deveras diferentes de resenha ou crítica profissional. Compre, ouça e depois me diga você o que percebeu.
Errei na mão ao calcular a quantidade de carne que iríamos comer. Sobrou demais. Comida esquentada é uma lástima. Minha sorte é que já tenho começado o almoço de segunda-feira. Nada convidativo, eu sei. Mas é a realidade.




8 de julho de 2010

"Eles" não estavam lá...


Passei o 6 de julho ansioso. Finalizando médias de recuperação dos meus gênios, o último trabalho extra-sala deste professor antes das férias. E aguardando a apresentação de Renato Teixeira, no projeto de música do Flamboyant. A considerar, o desconforto que me causava o local onde o show iria acontecer. Não é nenhum tipo de recalque, ódio classista ou algo que o valha. Eu simplesmente não gosto de shopping center, só isso. Vale para todos. Havia anos, ao pé da letra, que eu não ia ao Flamboyant. Da última vez que estive lá, foi para ver o filme “Auto da Compadecida”, com minha ainda namorada, atual esposa.

Eu tenho uma estranha impressão de estar sobrando nestes lugares. Principalmente nos shoppings mais sofisticados. Não gosto de ser observado. E como não atualizo meu guarda-roupa com freqüência, digamos que destôo um pouco da paisagem, para não ser cruel comigo mesmo. Não gosto de multidão. É, eu sei, soa contraditório, mas é isso. E aquele cheiro bizonho específico dali, nem me fale. Ao final do dilema, vale a pena enfrentar o templo maior do Jardim Goiás se o prêmio for uma apresentação de Renato Teixeira.

Conheci o trabalho deste violeiro em casa, junto à família roceira que tenho. As raízes dos Lopes estão profundamente fincadas no Triângulo Mineiro e interior paulista. Desde sempre eu ouço as canções deste que considero um dos maiores compositores de música caipira do final do século XX.

Como não precisava comprar nada que superasse a quantia de R$ 150, não ganhei entradas para assistir à apresentação sentado. Assim era a promoção das lojas. Acompanhamos tudo em pé, do fundo do espaço em um dos estacionamentos. Mas antes de nos acomodarmos, um pequeno pavor ainda me agitava o âmago: e se ELES estiverem lá?

“Eles”? Eles e elas são ruidosos. Andam aos bandos, e as estirpes masculinas não se importam de colocar sua descendência em risco com calças jeans Smith Brothers estupidamente apertadas. Não há problema se já é noite para o uso de chapéu, afinal ele não serve para tampar os raios solares, e sim para ostentar etiquetas procedentes da Casa do Rodeio. As botas destes tipos humanos não têm nenhum resquício de poeira vermelha de terra, só mesmo aquela preta, de asfalto. Geralmente se deslocam em enormes caminhonetes ou utilitários, que nunca carregam produtos do campo, mas na maioria das vezes, equipamentos de som muito mais caros que meu carro. O dialeto “deles” inclui expressões idiomáticas como “tchê, tchê, tchê!!!” (gritado pelo grupo como demonstração de júbilo), e dezenas de outras mais, cristalizadas por uma cultura própria. “Eles e elas”: caubóis e cowgirls do asfalto. Arremedo do homem do campo brasileiro, que se apossaram da cultura caipira ilegitimamente. Se eles estivessem lá em grande número, eu desanimaria e provavelmente, volveria à casa. Eu realmente não sabia se a obra de Renato Teixeira já havia sido pasteurizada e enlatada em grandes escalas. Ora, Tonico e Tinoco, Pedro Bento e Zé da Estrada, Zé Fortuna e Pitangueira, e outros gênios mais, hoje não fazem a alegria dos “sertanejos universitários”? Eu temia que as canções que aprendi a admirar pela leveza, beleza, sinceridade, já tivessem sido transformadas em hinos da galera da fivela de prato.

Sim, fui preconceituoso. E daí? Não sou obrigado a ser isento aqui. Mas me enganei. Felizmente. Como fiquei aliviado ao perceber que “eles” não estavam lá. Nem ao menos um da espécie. Não ouvi nenhum versinho rimando morena com pequena, e ao fim um original “seguuuuuura peão!”. Ufa! Pude ouvir os dedos do músico “trastejando” no braço do violão. Pude ouvir a poesia caipira palavra por palavra. Cada canção, uma pequena homenagem à natureza, à simplicidade, à vida. Acompanhado por seus filhos (baixo e segundo violão/voz) e um baterista, desfilaram canções conhecidas de qualquer um que goste do gênero. Todos os clássicos do compositor, e de outros compositores igualmente importantes. Renato Teixeira continua preciso naquilo que quer transmitir, pois utiliza-se de sinceridade para falar através de sua música. Escreve sobre aquilo que vive/viveu, e por isso soa original e verdadeiro o tempo todo. Seu estilo introspectivo de se apresentar nos leva à intimidade com o cantor. Nada de agudos intermináveis “xonados” ou “marvados”. Apenas uma voz doce e na medida pra traduzir a alma do campo.

E ali mesmo, na sua apresentação curta de 1 hora cravada, eu entendi. Nenhum verso de duplo sentido. Nenhuma rima a ser substituída por equivalente chulo. Nenhum “segura”, ou “simbóra”, ou “aôôô”. Nenhuma “bandida”. Nenhuma canção de estrutura fácil, e sim vários acordes rebuscados. Arranjos de bateria e percussão originais, emulando sons do campo. É por isso que nenhum espécime “sertanejo universitário” estava lá. Confirmei uma antiga teoria minha: há música caipira de qualidade superior. Há vida inteligente fora das FM’s. Há sensibilidade ainda no universo dito “sertanejo”.

Talvez neste texto de hoje eu fale mais sozinho do que de costume. Já não tenho muitos leitores, ao abordar música caipira então... mas me senti na obrigação de escrever sobre uma noite em que o casal Alemão transcendeu. A apresentação de Renato Teixeira nos deixou muito felizes. E tratar da vulgarização da arte, mesmo em um patamar diferente daquele que vínhamos aqui abordando, sempre é bom. Alfinetar um universo alheio ao meu, sem a menor responsabilidade, é melhor ainda. Ah! O politicamente incorreto...

Ao final do show, precisávamos comer algo. Já passava das 8 da noite, estávamos famintos. A praça de alimentação de um shopping do porte do Flamboyant dispensa comentários óbvios. Preços estratosféricos, idem. Chamar um sanduíche, ou fritas e demais similares de fast-food ou junkie-food, é natural. Mas chamar churrasco disso? Não nos agüentamos, ficamos muito curiosos. Arrombo no bolso, aqui vamos nós. Dois bifes de picanha grelhados acompanhados de fritas sabor fast-food e legumes, grelhados. Saladinha de brinde. Carne é bom, no espeto da churrascaria é melhor, e em casa é o ideal. Grelhar berinjela e abobrinha? Parabéns pela originalidade, que se mostrou desastrosa. Pelo preço que pagamos no nosso “jantar”, comeríamos em uma churrascaria concorrente carne de verdade. Lição aprendida. Churrasco não pode ser “Express”, senão seu dinheiro vai embora sem lhe proporcionar o prazer esperado. Chopp Brahma é sempre gostoso, se tomarmos como referencial o mundo mortal. Lá, o preço não me assustou, apesar de considerá-lo alto. Maior que no quiosque da marca. Não estou aqui pra dizer que a comida estava ruim. Não sou hipócrita. Mas tenho o dever de bom cidadão em lhe alertar que por preços similares você come melhor, com mais conforto e com bem menos emos por metro quadrado. E não há nada lá que supere qualquer outra casa de fast-food. Não há motivos para que regressemos.

Mesmo após o jantar, a música de Renato Teixeira ecoava fundo na alma. Aqueles versos desconcertantes, de tão simples e belos, encaixados em melodias inteligentes que fogem aos clichês, são uma fórmula que explica o pouco apelo comercial do compositor. E não é o caso de ouvir sua música só porque é “cool” gostar de algo assim, under. Eu gosto de um caminhão de coisas do mainstream. Apreciar a obra deste paulista do interior é como voltar no tempo e ouvir aquelas cantigas que a vovó cantava na beira do tanque. É como ouvir as músicas que o vovô assoviava baixinho esperando o piau beliscar. É reconfortante. Uma impressão que poucos ainda têm. E eu sou imensamente grato de ser um destes.