30 de maio de 2011

Leaf Hound e Dionísio cervejeiro: a volta em uma despedida.


Estou de volta. Passei por um longo e intenso processo de desintoxicação. Não foi como o de Fábio Assunção ou Vera Fischer, mas me ajudou bastante a determinar novas prioridades.


Dei um tempo em comunidades interneteiras, e passei a valorizar um pouco mais o contato real. Eu precisava disso agora, não sei se você precisa. Comigo funcionou, de repente não é bom pra você. Dei um tempo nas minhas bandas, evitando ensaios constantes, pra ver a coisa de longe e melhor posicionado. Passei um susto nos meninos de uma delas, o Tirei Zero, que acreditaram piamente que eu estaria bundando do projeto. Na verdade, como me fez bem esse momento “rehab”! E também parei de escrever o blog por um período muito longo, meses a fio. E nesse ínterim, não deixei de pensar se deveria retomar. Posso dizer que ponderei cada pedido recebido para isso, e é bacana dizer que não foram poucos. Eis-me aqui, de frente a página diminuta do Word Starter, com o cursor nervoso a piscar, como se pedisse velocidade naquilo que coloco teclado adentro. Estou de volta ao Rango Rock, até enjoar de tudo novamente. Na lista das coisas que eu gosto de fazer, este espaço se ocupa de duas delas: rock e comida. Não poderia mesmo ficar muito tempo longe.


E nessas folhas a menos do calendário 2010/2011, aconteceu algo previsível e já aguardado, com este que gasta a ponta dos dedos aqui no QG do blog: apareceu uma úlcera no meu esôfago, além de uma hérnia de hiato (releia o texto de estreia do blog, aqui.). Gastrite e refluxo são dois problemas sérios, e eu tripudiei deles por uma década. Isso mesmo: dez anos convivendo com estes problemas por conta de hábitos alimentares desastrosos – gordura, açúcar, cafeína e álcool em tempos diários nunca regulares. Medidas paliativas à base de omeprazol e ranitidina só adiaram o epílogo desta tragicomédia. E hoje, sou um apaixonado pela baixíssima gastronomia sem o principal instrumento de trabalho, pré-requisito básico para desventuras nestas paragens: um bom e resistente estômago. E ainda não cheguei propriamente ao terceiro círculo do inferno dantesco: estou em uma dieta rigorosa, sob medicação que só surte efeito caso eu me renda. Castigo merecido, aceitação resignada. O Limbo me aguarda, redentor após os três meses de penitência nos porões de Dite.


Mas indo ao ponto que move este blog: das milhares de coisas que ouvi nestes dias, aquela que fisgou a predileção do meu player foi gravada há 40 anos. É certo que conheci um caminhão de bandas nestes últimos dias sem escrever aqui, mas nenhuma me chamou mais a atenção do que o Leaf Hound e seu fantástico disco “Growers of Mushroom” de 1971. Timbres que hoje seriam chamados de vintage, onde é possível ouvir os dedos dos músicos passeando pelas cordas, excelentes riffs que evocam muita coisa boa do classic rock setentista, uma pegada stoner fodida, e o vocal de Peter French arrebentando. A banda é britânica, daquela safra de fins dos 60 e início dos 70 – Led Zeppelin, Black Sabbath, Deep Purple e outros. Vamos deixar comentários óbvios sobre essa geração pra lá, né?


Com muita preguiça de googlear, estas são as informações de que disponho de cabeça. Me parece que lançaram só esse disco, mas vá por mim: se você gosta de The Galo Power e ainda não conhece este trabalho, não brinque mais em serviço. Eu vi um vinil destes caras no Mercado Livre meses atrás, e havia três dígitos antes da vírgula, lá no preço. Se eu fosse rico, compraria.


A área da educação particular, na qual atuo como professor, tem lá seus problemas, é vero. Mas há também pequenos mimos reconfortantes, como feriados emendados, à moda do funcionalismo público. Curtindo dias de modorra em casa, é lei no lar de senhor e senhora “Alemão” cozinhar coisas decentes. Não sou católico e não sei quem é a santa padroeira da capital do meio-oeste onde não há inverno. Mas um feriado pra quebrar o rigor do interminável maio é sempre bom.


Meu fornecedor de carnes bovinas furou comigo feio, e não havia meu corte predileto: a suculenta e saborosa fraldinha, nova (?) sensação grelhas à fora nesse Goiás sem porteira. Então, inovar foi preciso. Nunca havia preparado uma maminha ao forno. Comprei uma “extra”, limpa e sem gordura em excesso ou sebos pendurados. Coisa bonita mesmo, de um quilo e uns choros. Até ao final da noite da segunda-feira 23 de Jorge e Mateus na 66ª exposição agropecuária, ela estaria assada e devidamente aprovada pelos paladares aos quais foi submetida. Cozinhá-la foi parte de uma terapia anti-estresse de casal aqui no minúsculo três quartos de 58 m². Moramos nas imediações da “Pecuária” de Goiânia. Preciso explicar mais alguma coisa?


O primeiro petardo do disco tem um riff grudento, do jeito que deve ser pra esse tipo de proposta vista no Leaf Hound – o som chama-se “Freelance Friend”. Liricamente, muito duplo sentido com expressões jargões da época (“do you feel it, babe?”, ou feels like isso ou aquilo...) povoam toda a obra, e não são o destaque. A música “Work my body” é típica nisso, sendo um flerte forte com o blues, origem musical da banda. A baladinha que vem na segunda faixa também é foda demais: “Sad road to the sea” lembra coisas do Grand Funk Railroad, considerando-se que o vocalista do Leaf Hound é mais técnico, na minha franciscana opinião.


A maminha é uma carne com menos sucos do que a fraldinha. Assada, essa proporção se torna ainda mais desvantajosa para o corte. Pedi uma peça “premium”, e não poderia prever nenhum problema, pois são nacos vizinhos no boi. Há variantes, lógico. Mas a fome era um bom persuasivo. E era minha despedida do mundo, antes de me entupir de remédio e comida (arrrgh!) saudável. Um futuro desolador se avizinhava, era ela ou comer fora. Peça fresca, do açougue, nada embalado a vácuo.


Ouvindo o Leaf Hound a gente entende porque o Black Drawing Chalks foi aclamado. A fórmula está ali, naqueles caras que hoje estão grisalhos e foderam com o mundo. Certo que a banda goiana é mais densa, pesada diriam uns, mas a compilação dos elementos foi muito bem emulada daqueles anos em que o rock se tornou sujo, com poeira da rota 66. Eu sinceramente queria ter uma banda com esse jeitão setentista. Me falta o talento, assumo depois de rápida consulta aos meus garageiros botões (eu amo o texto do Mino Carta, sim...)


A maminha da alcatra vai marinar inteira no suco de uma laranja, um limão, shoyu, uma cebola média picada, alho à rodo, pimenta verde e um vinho seco a seu gosto. Eu usei um bom pinotage. Dica aos iniciantes: aquelas coisas esquisitas que chamam de vinho por aí, que geralmente se conhece por “suave de mesa”, não servem nem pra temperar carne. Acredite, fiel adepto do “Cantina das Trevas”.


Tem um som nesse disco que é o espírito das bandas da época da boca-de-sino: “With a minute to go”. Inspirada. Imagino-a ao vivo, com os agudos firmes e jeito blueseiro do vocalista. Nasci na época errada, me diz a alma ligeiramente deprimida que povoa este corpo empenado.


E você pergunta: o vinho e os sucos cítricos vão se dar bem lá na minha tigelinha? Não tema, infant gourmet da classe C tupiniquim. É só ter bom senso. Derrame uma xícara de vinho, e só. Não queremos que o álcool se pronuncie demais. A menos que você queira temperar carne com aquela garrafa do velho mundo guardada na sua adega climatizada. Aí, o papo é outro. Agora, se seu score é igual ao meu e você dispõe de um "vinhozinho", não seja muquirana. Use aquele restinho da noite passada, afinal, garrafa aberta não conserva mais o vinho.


Antes de ir pra travessa da sua mãe mergulhar no molho escuro, a carne deve passar por uma massagem generosa com massa de alho e sal. A minha é caseira e eu sei a quantidade de sal que ela possui. Fure a carne, treinando seu lado Jack londrino. Só não a estripe (me ocorreu este trocadilho infame enquanto preparava o assado, chiste devidamente reprovado pela Dri. Mas mesmo assim, eu repasso). Pelos furos entrarão os sucos e o sal com alho. Marinou uma hora e alguma bobagem, é hora de passar um azeite supimpa na sua forma de alumínio, aquela de fundo mais fino mesmo. Mande todo o conteúdo cheiroso e escuro sobre a carne bem postada, banhando-a e ajeitando tudo bem bonito. É divertido demais.


Cara, apresentar o disco do Leaf Hound e não mencionar a canção “It’s gonna get better” seria um grande deslize. É aquele som pra cantar em coro abraçado com seu amigo, bêbado em final de festa. Lindo. Aqui em casa, não somos adeptos de música alta, estridente. Deixo esta falta de polidez e senso de coletividade para alguns ostrogodos que dividem o prédio comigo. Mas em raras vezes, excedo um pouco, por empolgação etílica, o volume do velho Phillips. Esse disco merece este lapso de civilidade.


Para incrementar as ondas de energias negativas que serão emanadas em direção ao meu 301 bloco 4, a carne irá para o forno, coberta com papel alumínio na primeira meia hora, esbanjando perfume enquanto cozinha. Rock clássico e cheiro de comida boa: vizinhos, mordei os cotovelos!


Bebi pouco nesta feita, e talvez tenha acontecido algo fenomenal com minhas papilas gustativas nesta noite: surpreenderam-se com a pré-condenada Bavária Premium. Em tempos plúmbeos como estes, onde a inflação manda beijos com gosto de “revival” e come meus ganhos, economizei na cerveja boa. E pra abrir um sorriso na sisuda face de contornos germânicos deste que escreve, a Bavária Premium só precisou gelar direito. Eu fui até o rótulo da garrafinha de 355 mililitros: disseram-me que ela é feita com matéria prima importada, cereais puro malte. Aí eu equacionei tudo: para uma puro malte, falta nascer de novo. Mas pelos irrisórios R$ 1,29 pagos por unidade, foi um dos melhores “custo-benefício” que tive até hoje, tratando-se de cervejas baratas. Ao arriscar e não comprar as mesmices de sempre, tive uma grata surpresa. Nada incomum, apenas acima da média das cervejas medíocres.


Metade da volta do ponteiro maior: é hora de conferir a maminha. Deve estar ainda com uma boa quantidade de molho, mas já assada parcialmente, rosada. Tire o alumínio e acrescente batatas cortadas em cruz na transversal, e cebolas com o mesmo corte. E aí vem o toque de diversão: arrume tudo pra ficar bonito, igual ao que a vovó fazia no domingo de férias. As batatas não devem ser muito grandes, para não ficarem crocantes meia hora mais tarde. E o aroma disso tudo? Dá orgulho, né? A Dri, minha esposa, mandou um arroz branco do jeito que a gente ama: cebola e alho de sobra, mas sem corar. Uns tomatinhos maduros no azeite e pronto. A estrela da noite já tem companhia.


E se você realmente achou que nós passamos a noite toda bebendo Bavária, é porque não me conhece. Economizo nas cervejas de entrada, aquelas que usarei apenas para me distrair enquanto cozinho. Mas na hora da degustação, sacamos a encorpada e deliciosamente amarga Baden Baden Red Ale, tipo Barley-wine, um arroubo de prazer, especialmente para a parcela que não consegue beber cervejas belgas, tchecas ou similares, por limites de caixa. Forte, com seus 9,2% de teor alcóolico por volume, vermelha densa, produz uma espuma cremosa e saborosa. Duas garrafas nos acompanharam na carne. Vale cada centavo, enquanto a Schincariol não a destrói.


Levemente triste por ser a minha despedida gastronômica, provamos e aprovamos. É um prato ácido e forte, e a carne ficou firme, com uma fina camada tostada, e um miolo entre mal passado e ao ponto. Exatamente como prevíamos. Usamos o forno médio pra isso. Casou em núpcias perfeitas com o arroz branquinho. E a Baden Baden mostrou porque é considerada uma das melhores cervejas do Brasil: pra carnes fortes em tempero, eu não conheço nada melhor nas terras de Iracema. Ouvindo o disco do Leaf Hound duas vezes, tivemos uma noite invejável. A obra puxou outras tão sublimes quanto, e eu voltei às minhas velharias pra fechar esta festa. Revisitamos o Sabbath de Ozzy em vários discos, já ligeiramente bêbados pela quantidade dionísica de álcool injetada pela Baden Baden em nossas cabeças. Assim, com a língua grossa e teimando em não executar exatamente o que eu mandava, prometi à Dri: vou reativar o Rango Rock. Assim, emotivo mesmo, disse o ébrio mezzo teutônico mezzo roceiro. Foi importante, por ter sido o primeiro passo concreto para abandonar mais uma forte crise depressiva que incomodava as pessoas que eu amo à minha volta. São pouquíssimas, é verdade, mas mesmo assim elas não merecem um Alemão deprimido. Torno-me realmente insuportável.


Ah! E sobre a despedida gastronômica, aviso ao leitor: sempre tive uma pontinha autodestrutiva. Não estranhe se outros pratos fortes pintarem por aqui.


Leaf Hound em um blog que eu frequentava: baixe e deleite-se.