25 de junho de 2010

Conformistas. Será que ao menos sabemos disso?


Aprendi muita coisa de língua inglesa traduzindo letras de músicas das bandas que eu ouvia no ensino médio. Eu era inclusive elogiado pela professora Ereni, pelo meu bom desempenho em sua matéria. Nerdismo à flor da pele. Bons tempos.
Foi nesta época que eu conheci o Dead Kennedys e o seu disco “Bedtime for Democracy”. As melhores letras do hardcore punk de todos os tempos estão ali, segundo a modestíssima opinião deste apaixonado e completamente parcial observador. Foi ali que eu percebi o quão inteligente pode ser a produção de arte punk. Nada de discursos clichês e vazios de significado. Nada de frases feitas, de impacto, nada cifrado ou criptografado. O disco é um murro no olho. Ainda sem internet disponível para mortais filhos de operários, estudantes de colégios periféricos estaduais e afins (lembre-se que eu disse estar no ensino médio, ou seja, era do quartenário cenozóico superior, ou coisa do tipo), pesquisei demais pra entender grande parte do conteúdo. A capa por si só já faz este convite. E veja só: um caminhão de coisas passaram desapercebidas neste primeiro contato, pois a informação, no início dos anos 90, ainda era difícil de se conseguir. Digamos que o caldo do trabalho eu saquei.
Eu pirei naquilo tudo. E me alimentei muito nessa fonte. A escolha em usar a música para o discurso político foi feita ali: de 1995 em diante, toneladas de bandas, fanzines e demais materiais iam me preenchendo. “Santa” passagem pela Escola Técnica Federal de Goiás.
E aí, no velho orkut, semana passada, rolou um daqueles raríssimos papos inteligentes na comunidade “Goiânia Rock City”. Wander Segundo, administrador do selo Two Beers or not Two Beers, figura empenhada em aprofundar o debate sempre, jogou titica de galinha de conformista no ventilador da cena hardcore punk em dois tópicos. Um em especial, citando a letra mais completa do punk na história, em alusão à cena rock goianiense: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=61338&tid=5485373415445971936.
Entenda o título desta provocação visitando o endereço. Debate sugerido, estou aqui quase enamorado de meus fictícios botões: o discurso punk realmente ainda é viável? Digo: me foi, durante anos em que eu adolescia.
Quando entrei para a faculdade de História, as coisas começaram a mudar. O nerdismo aumentou, eu tive contato com um novo mundo, e grande parte do discurso hardcore punk o qual eu tinha acesso começou a soar infantil, datado, ultrapassado, ingênuo. A medida em que os grandes autores da filosofia, historiografia, sociologia e outras logias entravam em minha cabeça, os compositores e escritores do hardcore e punk iam deixando de me seduzir. Me lembro muito bem: meu professor de Teoria da História, Walmir Barbosa, me emprestou uma coletânea de Adorno. Minha vida mudou ali, pelo prazer de ler algo tão instigante. Mudou mais ainda depois que eu entendi os textos, he he he. Com Georg Lukács foi semelhante.
É compreensível que a crítica social presente no discurso hardcore punk fosse rasa e ingênua no início. Afinal, não estamos falando de algo direcionado para bancos acadêmicos. Mas há de se considerar todo o avanço das condições históricas, desde o surgimento do punk, nos idos de 74/75 até hoje: os desafios estão maiores, pois os problemas levantados pelo punk nos anos 70 se agudizaram. A indústria cultural avançou e pasteurizou o próprio punk e seus sub-gêneros. As guerras não acabaram, a desigualdade social é maior hoje que 40 anos atrás, e se fôssemos listar toda a gama de possibilidades a serem criticadas pelo punk, escreveríamos um tratado. E a pergunta premiada é: o punk, como ferramenta social de contestação, de contra-hegemonia cultural, também avançou? Passo. A apropriação do discurso, da estética, enfim, do “espírito” punk pela cultura de massa foi respondida com novas formulações destes?
Um dos problemas está justamente aí: considerar que exista um padrão de comportamento a ser seguido para quem se dispuser a fazer música punk. Um dos efeitos nefastos do modelo de mercadorização da arte é descaracterizá-la e embalá-la com outra roupagem. Nem todo mundo que faz música punk hoje quer usar do clássico discurso de protesto, direcionado para o quer que seja. O diferencial do punk, dentro do espectro artístico, sempre foi o discurso. A música apenas embala aquilo que o punk faz(ia) de melhor: contestação.
Isso chega a ser uma contradição? Não. Somente se considerarmos que exista o punk “certo” e o punk “errado”. Certo: manter o discurso ácido de crítica social. Errado: montar uma banda pra aparecer na MTV. Ironia barata à parte, sabemos que não existem donos da música, que é uma expressão universal da humanidade. Este passo é importante para que não se cobre algo implausível: apontar o dedo para pessoas que, mesmo sabendo disso que estamos aqui discutindo, não comungue desta visão em particular, vire-se para o dedo acusador e solte um folgado e despreocupado “foda-se”.
O conformismo, criticado dantes por punks, é marca dentro do prórpio. E não seria aí um momento de delimitar rupturas? Marcar posições e esclarecer? Dizer que o “Punk não é somente uma estética artística, mas se construiu historicamente como alternativa à cultura de massa, através de um discurso próprio que oferecia uma leitura concreta da realidade” seria um bom começo para este processo, não?
O punk saiu da periferia operária das metrópoles, aqui no Brasil. E isso já faz um bom tempo. Em Goiânia, ele nunca esteve lá, pelo menos não como discurso principal. Outras manifestações culturais e estéticas musicais são os atuais veículos das idéias de contestação. O rap, por exemplo. E isso causa um imenso problema: a questão de um discurso ilegítimo, se perpetrado por indivíduos alheios à realidade em questão.
Você vai citar excessões de coletivos punks, eu sei. De pessoas que se proletarizam por livre e espontânea vontade, por vezes. Eu nunca acreditei no discurso “Ei, estou aqui afundado na lama pra sentir o desgosto do mundo. É assim que ele vai mudar”. Muito menos no “minha demo está na Eslovênia e de lá, chegou na Estônia. E assim, eu mudei o mundo”. A mudança comportamental e o discurso de transformação pelo caos sempre me soaram preguiçosos. Então, devemos deixar o mundo se acabar primeiro, pra depois construir outro? Volto a tocar a mesma nota de antes: ingenuidade, infantilidade. O neoliberalismo agradece, e muito, esta inércia e ceticismo com ações políticas. Há 35 anos, diziam por aí que não haveria futuro pra nós. Drogaram-se e esperaram o caos chegar, pois a sociedade era um lixo e blá, blá, blá. E o que sobreveio foi sim o caos. Estaria ainda muito cedo para se iniciar uma reação?
Shows por si só não contribuem. Demos e discos por si só, muito menos. Camisetas, patches, braceletes, são só acessórios. Tênis de cano alto é apenas mais uma moda imbecil, saudosista por uma época que nem todos viveram. Se não há a circulação de idéias, o debate, a construção de alternativas para a difusão independente da arte contra-hegemônica, e se nessa arte o discurso não for mais importante que a música, não há cena. Hoje, o governo sustenta o rock. A iniciativa privada sustenta o rock. Guitarras e visual, por si só, não mudam porra nenhuma. Pelo menos se você pensa em contribuir como indivíduo ativo para a trasformação de modelo social.
Conformistas? Sim. Mas talvez sem nem ao menos saber disso. É assim que percebo a cena hardcore punk goianiense hoje. Faltam mais Biafras entre nós. Em quantas palestras sobre algo relacionado à esta discussão você foi neste último ano? Quantos livros você leu sobre estes apontamentos aqui colocados? Quantos filmes fizemos sobre a cena hardcore punk na última década? Qual foi a última vez em que paramos e pensamos se o hardcore punk realmente contribui conosco para uma formação mais humanista?
Som por som. Visual. Reconhecimento efêmero junto aos amigos. Demonstração de virilidade. Fuga covarde da realidade enebriando-se quimicamente. Novas bandas, problemas velhos.

3 comentários:

Bruno Abnner disse...

Acredito que as condições que deram sustentação e motivo pra linguagem punk ainda batem na porta diariamente no presente momento histórico. Tais condições, para exemplificar, posso ficar restrito ao que a análise traz: desigualdade social, indústria cultural, rumos nefastos da civilização. Na linguagem punk me refiro ao sentido restrito da palavra linguagem, especificamente nas temáticas de letras e no tom agressivo na relação música-corpo.
O Punk seria esse momento fugaz onde a arte não é mais refém de um projeto que entende a arte como reprodução, conformismo, infantilização dos indivíduos. A arte aqui tem sua postura de emancipação do ser. Se o punk tem algo especial, essa é o ato: A arte dando sinais de possibilidade de emancipação do indivíduo.
Partindo desse referencial, gostaria de colocar alguns pontos. O punk não pode ser visto fora da esfera “arte”. Temos que fazer um diálogo da cultura com outras possibilidades de emancipação do homem, e coligar o espírito com outras manifestações que compartilham do mesmo objetivo. Ou seja, acredito que estamos em uma posição privilegiada de visão e podemos afirmar que o que se coloca é uma disputa de projetos. E nesse embate de projetos o punk se encontra do lado da “contra-civilização”. Na minha humilde opinião tínhamos e temos N manifestações que concorrem para um mesmo lado, mas por X motivos que não cabe debater aqui, não se encontram para debater um projeto de novas possibilidades que permitam uma fuga da Jaula. A Jaula que acorrenta o ser. A jaula que insiste em fabricar Hommers, ou Lineus como o editor do JN Bonner.
Nesse sentido eu entendo que meus CDS não me valem muito. Que as mil possibilidades de discos pra baixar já não é grande valia. Que a minha banda nem é algo tão fundamental assim. Que se meu CD rolar na Alemanha nem é algo tão central assim.
O centro dessas questão reside, e é aqui se encontra o elo fundamental: Que os CDS, bandas, roles estivessem situados em que lado (projeto) elas desejam se enquadrar.
Não se trata de um projeto único e universal com regrar e metas. Projeto no sentido de contra hegemonia, defender a pluralidade e uma arte que não deseje entreter por entreter.
Minha crítica a Goiânia se fundamenta nesses pontos também que já falei acima e outros. Por não termos uma cena sólida, um projeto norteador, existe mecanismos de preenchimento: Grandes figuras que personificam a áurea punk. Sentimento nostálgico que conforta dizendo “não temos um presente legal, mas antigamente a coisa era produtiva”. Redes de personas autorizadas a dar o certificado de “agora você pode começar a tocas, agora você pode se considerar...”. E a ausência da consciência do que afinal o punk e outros mecanismos de poder lutam contra acabam por gerar esses aspectos.
Talvez esse seja meu argumento pra esclarecer, ou ao menos ajudar, as questões que você coloca no fim do texto. Afinal o que é ser punk hoje? É a linguagem visual das antigas que te diferenciam das tendências novas? É se denominar ultrapassado se colocando como autentica vanguarda? É se fechar em grupos e “desiludido sim, mas ainda sou”. Ou mais, defender a flexibilização do trabalho dias de semana e final de semana ensaiar com a banda punk?

Bruno Abnner Lourenzatto Silveira

Lorranzito disse...

Ae Alemão! Li o seu post e achei muito sincero e direto. Eu respeito as pessoas que tem uma "ideologia" como forma de correr atrás por uma sociedade mais justa. O problema é como você bem citou aí: além do conformismo que rola, as pessoas correm atrás meio que como cobra-cegas. Não é difícil ver em Goiânia julgos punks de estilo e até uma certa atitude (o que não é ruim). Mas o que falta pra isso dar certo, e que poucos o fazem, é se informar. Não aquela informação de você entrar no google, digitar a história de punk e pronto, sou punk agora. Mas como você disse, isso vai além de discursos que até já acho ultrapassados. Até porque se isso resolvesse alguma coisa, isso já teria mudado. Na minha modesta opnião, acho que se tem um caminho pra mudança, esse caminho é a educação de nosso próprio intelecto, para uma melhor compreensão desse tão complexo mundinho desigual.

Bartião Camisetas disse...

Tenho com o meu achismo, que aquela mudança que rolou de 77 em diante,
do punk abduzido pela industria, a transformação da galera em pessoas interessadas
em estéticas mais artísticas e toda a frescura seguinte, apenas se repete de certa forma.
A urgência e a necessidade de impacto hoje, pelo acesso fácil e informação de zilhões de gigas
por segundo, acabaram tendo seu tempo de busca pelo "bem feito", pelo "bonito" e "maduro" sendo reduzidos
a quase zero.
O Hardcore ali da California deveria inspirar, ao meu ver uma nova ONDA CONTRA também, há os resistentes e sempre haverá,
só que é preciso uma onda local, a necessidade da raiz IMPORTADA é degradante a realidade atual e isso é real. PRA MIM. Indivíduo.

Outro ponto.
Som de periferia?
Infelizmente já caiu fora de questão há tempos, quem vai a periferia pra "conhecer" não deve representar algo, ao meu ver.
Ser brother de perifericos não te faz um, no máximo o respeito tá ali.

Ação individual(local) pra resultado (global) coletivo é o que renova, fora isso , utopia eterna.