Passei o 6 de julho ansioso. Finalizando médias de recuperação dos meus gênios, o último trabalho extra-sala deste professor antes das férias. E aguardando a apresentação de Renato Teixeira, no projeto de música do Flamboyant. A considerar, o desconforto que me causava o local onde o show iria acontecer. Não é nenhum tipo de recalque, ódio classista ou algo que o valha. Eu simplesmente não gosto de shopping center, só isso. Vale para todos. Havia anos, ao pé da letra, que eu não ia ao Flamboyant. Da última vez que estive lá, foi para ver o filme “Auto da Compadecida”, com minha ainda namorada, atual esposa.
Eu tenho uma estranha impressão de estar sobrando nestes lugares. Principalmente nos shoppings mais sofisticados. Não gosto de ser observado. E como não atualizo meu guarda-roupa com freqüência, digamos que destôo um pouco da paisagem, para não ser cruel comigo mesmo. Não gosto de multidão. É, eu sei, soa contraditório, mas é isso. E aquele cheiro bizonho específico dali, nem me fale. Ao final do dilema, vale a pena enfrentar o templo maior do Jardim Goiás se o prêmio for uma apresentação de Renato Teixeira.
Conheci o trabalho deste violeiro em casa, junto à família roceira que tenho. As raízes dos Lopes estão profundamente fincadas no Triângulo Mineiro e interior paulista. Desde sempre eu ouço as canções deste que considero um dos maiores compositores de música caipira do final do século XX.
Como não precisava comprar nada que superasse a quantia de R$ 150, não ganhei entradas para assistir à apresentação sentado. Assim era a promoção das lojas. Acompanhamos tudo em pé, do fundo do espaço em um dos estacionamentos. Mas antes de nos acomodarmos, um pequeno pavor ainda me agitava o âmago: e se ELES estiverem lá?
“Eles”? Eles e elas são ruidosos. Andam aos bandos, e as estirpes masculinas não se importam de colocar sua descendência em risco com calças jeans Smith Brothers estupidamente apertadas. Não há problema se já é noite para o uso de chapéu, afinal ele não serve para tampar os raios solares, e sim para ostentar etiquetas procedentes da Casa do Rodeio. As botas destes tipos humanos não têm nenhum resquício de poeira vermelha de terra, só mesmo aquela preta, de asfalto. Geralmente se deslocam em enormes caminhonetes ou utilitários, que nunca carregam produtos do campo, mas na maioria das vezes, equipamentos de som muito mais caros que meu carro. O dialeto “deles” inclui expressões idiomáticas como “tchê, tchê, tchê!!!” (gritado pelo grupo como demonstração de júbilo), e dezenas de outras mais, cristalizadas por uma cultura própria. “Eles e elas”: caubóis e cowgirls do asfalto. Arremedo do homem do campo brasileiro, que se apossaram da cultura caipira ilegitimamente. Se eles estivessem lá em grande número, eu desanimaria e provavelmente, volveria à casa. Eu realmente não sabia se a obra de Renato Teixeira já havia sido pasteurizada e enlatada em grandes escalas. Ora, Tonico e Tinoco, Pedro Bento e Zé da Estrada, Zé Fortuna e Pitangueira, e outros gênios mais, hoje não fazem a alegria dos “sertanejos universitários”? Eu temia que as canções que aprendi a admirar pela leveza, beleza, sinceridade, já tivessem sido transformadas em hinos da galera da fivela de prato.
Sim, fui preconceituoso. E daí? Não sou obrigado a ser isento aqui. Mas me enganei. Felizmente. Como fiquei aliviado ao perceber que “eles” não estavam lá. Nem ao menos um da espécie. Não ouvi nenhum versinho rimando morena com pequena, e ao fim um original “seguuuuuura peão!”. Ufa! Pude ouvir os dedos do músico “trastejando” no braço do violão. Pude ouvir a poesia caipira palavra por palavra. Cada canção, uma pequena homenagem à natureza, à simplicidade, à vida. Acompanhado por seus filhos (baixo e segundo violão/voz) e um baterista, desfilaram canções conhecidas de qualquer um que goste do gênero. Todos os clássicos do compositor, e de outros compositores igualmente importantes. Renato Teixeira continua preciso naquilo que quer transmitir, pois utiliza-se de sinceridade para falar através de sua música. Escreve sobre aquilo que vive/viveu, e por isso soa original e verdadeiro o tempo todo. Seu estilo introspectivo de se apresentar nos leva à intimidade com o cantor. Nada de agudos intermináveis “xonados” ou “marvados”. Apenas uma voz doce e na medida pra traduzir a alma do campo.
E ali mesmo, na sua apresentação curta de 1 hora cravada, eu entendi. Nenhum verso de duplo sentido. Nenhuma rima a ser substituída por equivalente chulo. Nenhum “segura”, ou “simbóra”, ou “aôôô”. Nenhuma “bandida”. Nenhuma canção de estrutura fácil, e sim vários acordes rebuscados. Arranjos de bateria e percussão originais, emulando sons do campo. É por isso que nenhum espécime “sertanejo universitário” estava lá. Confirmei uma antiga teoria minha: há música caipira de qualidade superior. Há vida inteligente fora das FM’s. Há sensibilidade ainda no universo dito “sertanejo”.
Talvez neste texto de hoje eu fale mais sozinho do que de costume. Já não tenho muitos leitores, ao abordar música caipira então... mas me senti na obrigação de escrever sobre uma noite em que o casal Alemão transcendeu. A apresentação de Renato Teixeira nos deixou muito felizes. E tratar da vulgarização da arte, mesmo em um patamar diferente daquele que vínhamos aqui abordando, sempre é bom. Alfinetar um universo alheio ao meu, sem a menor responsabilidade, é melhor ainda. Ah! O politicamente incorreto...
Ao final do show, precisávamos comer algo. Já passava das 8 da noite, estávamos famintos. A praça de alimentação de um shopping do porte do Flamboyant dispensa comentários óbvios. Preços estratosféricos, idem. Chamar um sanduíche, ou fritas e demais similares de fast-food ou junkie-food, é natural. Mas chamar churrasco disso? Não nos agüentamos, ficamos muito curiosos. Arrombo no bolso, aqui vamos nós. Dois bifes de picanha grelhados acompanhados de fritas sabor fast-food e legumes, grelhados. Saladinha de brinde. Carne é bom, no espeto da churrascaria é melhor, e em casa é o ideal. Grelhar berinjela e abobrinha? Parabéns pela originalidade, que se mostrou desastrosa. Pelo preço que pagamos no nosso “jantar”, comeríamos em uma churrascaria concorrente carne de verdade. Lição aprendida. Churrasco não pode ser “Express”, senão seu dinheiro vai embora sem lhe proporcionar o prazer esperado. Chopp Brahma é sempre gostoso, se tomarmos como referencial o mundo mortal. Lá, o preço não me assustou, apesar de considerá-lo alto. Maior que no quiosque da marca. Não estou aqui pra dizer que a comida estava ruim. Não sou hipócrita. Mas tenho o dever de bom cidadão em lhe alertar que por preços similares você come melhor, com mais conforto e com bem menos emos por metro quadrado. E não há nada lá que supere qualquer outra casa de fast-food. Não há motivos para que regressemos.
Mesmo após o jantar, a música de Renato Teixeira ecoava fundo na alma. Aqueles versos desconcertantes, de tão simples e belos, encaixados em melodias inteligentes que fogem aos clichês, são uma fórmula que explica o pouco apelo comercial do compositor. E não é o caso de ouvir sua música só porque é “cool” gostar de algo assim, under. Eu gosto de um caminhão de coisas do mainstream. Apreciar a obra deste paulista do interior é como voltar no tempo e ouvir aquelas cantigas que a vovó cantava na beira do tanque. É como ouvir as músicas que o vovô assoviava baixinho esperando o piau beliscar. É reconfortante. Uma impressão que poucos ainda têm. E eu sou imensamente grato de ser um destes.
Eu tenho uma estranha impressão de estar sobrando nestes lugares. Principalmente nos shoppings mais sofisticados. Não gosto de ser observado. E como não atualizo meu guarda-roupa com freqüência, digamos que destôo um pouco da paisagem, para não ser cruel comigo mesmo. Não gosto de multidão. É, eu sei, soa contraditório, mas é isso. E aquele cheiro bizonho específico dali, nem me fale. Ao final do dilema, vale a pena enfrentar o templo maior do Jardim Goiás se o prêmio for uma apresentação de Renato Teixeira.
Conheci o trabalho deste violeiro em casa, junto à família roceira que tenho. As raízes dos Lopes estão profundamente fincadas no Triângulo Mineiro e interior paulista. Desde sempre eu ouço as canções deste que considero um dos maiores compositores de música caipira do final do século XX.
Como não precisava comprar nada que superasse a quantia de R$ 150, não ganhei entradas para assistir à apresentação sentado. Assim era a promoção das lojas. Acompanhamos tudo em pé, do fundo do espaço em um dos estacionamentos. Mas antes de nos acomodarmos, um pequeno pavor ainda me agitava o âmago: e se ELES estiverem lá?
“Eles”? Eles e elas são ruidosos. Andam aos bandos, e as estirpes masculinas não se importam de colocar sua descendência em risco com calças jeans Smith Brothers estupidamente apertadas. Não há problema se já é noite para o uso de chapéu, afinal ele não serve para tampar os raios solares, e sim para ostentar etiquetas procedentes da Casa do Rodeio. As botas destes tipos humanos não têm nenhum resquício de poeira vermelha de terra, só mesmo aquela preta, de asfalto. Geralmente se deslocam em enormes caminhonetes ou utilitários, que nunca carregam produtos do campo, mas na maioria das vezes, equipamentos de som muito mais caros que meu carro. O dialeto “deles” inclui expressões idiomáticas como “tchê, tchê, tchê!!!” (gritado pelo grupo como demonstração de júbilo), e dezenas de outras mais, cristalizadas por uma cultura própria. “Eles e elas”: caubóis e cowgirls do asfalto. Arremedo do homem do campo brasileiro, que se apossaram da cultura caipira ilegitimamente. Se eles estivessem lá em grande número, eu desanimaria e provavelmente, volveria à casa. Eu realmente não sabia se a obra de Renato Teixeira já havia sido pasteurizada e enlatada em grandes escalas. Ora, Tonico e Tinoco, Pedro Bento e Zé da Estrada, Zé Fortuna e Pitangueira, e outros gênios mais, hoje não fazem a alegria dos “sertanejos universitários”? Eu temia que as canções que aprendi a admirar pela leveza, beleza, sinceridade, já tivessem sido transformadas em hinos da galera da fivela de prato.
Sim, fui preconceituoso. E daí? Não sou obrigado a ser isento aqui. Mas me enganei. Felizmente. Como fiquei aliviado ao perceber que “eles” não estavam lá. Nem ao menos um da espécie. Não ouvi nenhum versinho rimando morena com pequena, e ao fim um original “seguuuuuura peão!”. Ufa! Pude ouvir os dedos do músico “trastejando” no braço do violão. Pude ouvir a poesia caipira palavra por palavra. Cada canção, uma pequena homenagem à natureza, à simplicidade, à vida. Acompanhado por seus filhos (baixo e segundo violão/voz) e um baterista, desfilaram canções conhecidas de qualquer um que goste do gênero. Todos os clássicos do compositor, e de outros compositores igualmente importantes. Renato Teixeira continua preciso naquilo que quer transmitir, pois utiliza-se de sinceridade para falar através de sua música. Escreve sobre aquilo que vive/viveu, e por isso soa original e verdadeiro o tempo todo. Seu estilo introspectivo de se apresentar nos leva à intimidade com o cantor. Nada de agudos intermináveis “xonados” ou “marvados”. Apenas uma voz doce e na medida pra traduzir a alma do campo.
E ali mesmo, na sua apresentação curta de 1 hora cravada, eu entendi. Nenhum verso de duplo sentido. Nenhuma rima a ser substituída por equivalente chulo. Nenhum “segura”, ou “simbóra”, ou “aôôô”. Nenhuma “bandida”. Nenhuma canção de estrutura fácil, e sim vários acordes rebuscados. Arranjos de bateria e percussão originais, emulando sons do campo. É por isso que nenhum espécime “sertanejo universitário” estava lá. Confirmei uma antiga teoria minha: há música caipira de qualidade superior. Há vida inteligente fora das FM’s. Há sensibilidade ainda no universo dito “sertanejo”.
Talvez neste texto de hoje eu fale mais sozinho do que de costume. Já não tenho muitos leitores, ao abordar música caipira então... mas me senti na obrigação de escrever sobre uma noite em que o casal Alemão transcendeu. A apresentação de Renato Teixeira nos deixou muito felizes. E tratar da vulgarização da arte, mesmo em um patamar diferente daquele que vínhamos aqui abordando, sempre é bom. Alfinetar um universo alheio ao meu, sem a menor responsabilidade, é melhor ainda. Ah! O politicamente incorreto...
Ao final do show, precisávamos comer algo. Já passava das 8 da noite, estávamos famintos. A praça de alimentação de um shopping do porte do Flamboyant dispensa comentários óbvios. Preços estratosféricos, idem. Chamar um sanduíche, ou fritas e demais similares de fast-food ou junkie-food, é natural. Mas chamar churrasco disso? Não nos agüentamos, ficamos muito curiosos. Arrombo no bolso, aqui vamos nós. Dois bifes de picanha grelhados acompanhados de fritas sabor fast-food e legumes, grelhados. Saladinha de brinde. Carne é bom, no espeto da churrascaria é melhor, e em casa é o ideal. Grelhar berinjela e abobrinha? Parabéns pela originalidade, que se mostrou desastrosa. Pelo preço que pagamos no nosso “jantar”, comeríamos em uma churrascaria concorrente carne de verdade. Lição aprendida. Churrasco não pode ser “Express”, senão seu dinheiro vai embora sem lhe proporcionar o prazer esperado. Chopp Brahma é sempre gostoso, se tomarmos como referencial o mundo mortal. Lá, o preço não me assustou, apesar de considerá-lo alto. Maior que no quiosque da marca. Não estou aqui pra dizer que a comida estava ruim. Não sou hipócrita. Mas tenho o dever de bom cidadão em lhe alertar que por preços similares você come melhor, com mais conforto e com bem menos emos por metro quadrado. E não há nada lá que supere qualquer outra casa de fast-food. Não há motivos para que regressemos.
Mesmo após o jantar, a música de Renato Teixeira ecoava fundo na alma. Aqueles versos desconcertantes, de tão simples e belos, encaixados em melodias inteligentes que fogem aos clichês, são uma fórmula que explica o pouco apelo comercial do compositor. E não é o caso de ouvir sua música só porque é “cool” gostar de algo assim, under. Eu gosto de um caminhão de coisas do mainstream. Apreciar a obra deste paulista do interior é como voltar no tempo e ouvir aquelas cantigas que a vovó cantava na beira do tanque. É como ouvir as músicas que o vovô assoviava baixinho esperando o piau beliscar. É reconfortante. Uma impressão que poucos ainda têm. E eu sou imensamente grato de ser um destes.
4 comentários:
Sou fã dos seus textos haha
Cara, como é bom ler seu texto! Nada de firulas... É simples, reto, na cara. E o mais importante passa uma opinião SINCERA do autor.
Digno de mérito as descrições sobre os "cowboys do asfalto" que tanto mancham a essência da real música caipira com seus hábitos, no mínimo, toscos.
Saindo um pouco da resenha... Vi que tu andas ouvindo Jazz. Recomendo:
Chet Baker (Cool Jazz),
Pat Metheny (Fusion) e,claro...
Jaco Pastorius!
Continue escrevendo!
Quase conseguiu o que espero ler aqui, música boa e comida de dar água na boca, a perfeição, não fosse a reclamação justa dos $$$$ gastos e que churrasco caseiro é sempre o melhor por vários motivos: companhia, ambiente e (me desculpe a vaquinha e algum vegetariano lendo aqui) cheiro da carne assando é bom demais hehehe...
Israel
André, não gosto de música caipira, minhas origens musicais começaram comigo e com alguma coisa que peguei das minhas irmãs. Entendo sua reclamação e compartilho da opinião sobre os caubóis. Gostaria de dizer que vc não é preconceituoso com essa galera. Isso não é preconceito, é discriminação. Eu discrimino. kkkkkkk
Abraços. Ah, se vc estiver ouvindo jazz, me passa o pendrive pra eu gravar uma seleção com a nata do jazz norte-americano procê.
abraços de novo.
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