O inverno goianiense pede cerveja gelada. São complementares, aqui neste sertão, a estação e a bebida. Temperaturas sempre entre 25 e 30ºC. E um ar seco e carregado que faz sangrar meu nariz, em alguns dias.
No último sábado 7 o trabalho ocupou meu tempo apenas até as 11 da manhã. Depois disso, dia de folga. Precisava fazer algumas compras pra casa e me deparei, em um hipermercado, com a honesta Devassa Ruiva por convidativos 3 reais a garrafa. Fazer-se de rogado não é do meu feitio, adotei três mocinhas sardentinhas destas e as levei para o conforto de meu freezer doméstico. O clima desértico, a hora do almoço se avizinhando, tudo conspirava.
Mas parecia que meu capetinha interno não estava satisfeito. Rapidamente ele me convenceu da parvoíce do anjinho companheiro, e me convidou para mais. Era preciso dar valor ao último sabbath livre antes do início de minha rotina de escravo da indústria do vestibular. Era um brado de despedida. Afinal, sete dias adiante, eu estaria internado em uma sala de aula, repetindo coisas que já ministro no piloto automático. Pensando em bebedores disponíveis para dividir a mesa, e que tivessem a virtude de compartilhar minha amizade, os convites foram feitos aos meus parceiros de Sangue Seco, Guga Valente e Eduardo Mesquita, que tiveram o bom senso de aceitar. Afinal, não é todo dia que algum mortal tem a chance de aparecer por aqui, no blog. Modo “arrogância” para minha última sentença, por favor.
A bela largada do dia, bebendo cerveja de alta fermentação e personalidade forte, me inspirou a beber com qualidade, e não com quantidade. Sugeri visitarmos o bar Devassa, no templo de Mamon incrustado no Vaca Brava. Guga me alertou de um novo bar entre a T-7 e a T-9, na altura do Marcos. Rumamos para esta opção – Território da Picanha. Bar sertanejo, frustração: não sabíamos disso, embora pudéssemos deduzir, já que vivemos no “meio-oeste” do imaginário brasileiro. Mas era dia de alegria, e precisava muito mais do que um simples Victor e Léo pra estragar meu bom humor.
Conversar com amigos e beber cerveja. Às vezes me ocorre que muito da Criação (assim, com maiúscula) foi feita desta maneira. O Homem lá de cima (?) resenhando com São Pedro e pimba!, dá aquele insight no cara:
“–Tô vendo aqui, Pedrão! Pensa só, meu... Bóra descostelar o Adão, mandar uma moçoila pra ele e ver no que é que dá?”
São Pedro sorve um gole e dispara:
“–Aposto que dá merda, mermão... ops! Meu pai...”
É uma atividade digna de deuses mesmo. Largar de contar as voltas do ponteiro do relógio, esticar as pernas, coçar o saco à maneira dos ogros. E elencar assuntos dignos para o momento, é claro: futebol, mulheres e rock. É que somos caretas, sacomé né? Dá até pra esquecer da missão de “se unir aos proletários do mundo”.
Já tive muitos amigos de copo. Interessante mesmo é quando há a possibilidade de aprofundar a amizade nascente através de um caneco. Infantis, simples e sábias palavras de Shreck: somos como cebolas, temos camadas. E álcool é um excelente meio de descascá-las. A cerveja entra pela boca e abre a “caixa de ferramentas” do sujeito. As verdades pessoais saem pelos poros. Coisa bonita de se ver. No texto passado, eu falava sobre elementos charmosos do machismo. As juras de amor e consideração entre marmanjos bêbados à mesa do bar são, sem dúvida, partes do gênero. Tivemos isso neste sábado.
Iniciamos os trabalhos com uma instigante Baden Baden Red Ale. Cerveja nacional, de Campos do Jordão, tem como trunfo a excelente qualidade da água usada no fabrico da bebida. Como a produção é de pequena escala, há mais esmero na qualidade dos ingredientes, como lúpulos importados, por exemplo. Encorpada, forte, como esperado. A espuma é cremosa e saborosa, vale a pena deixar um dedo de colarinho. Minhas referências ao degustar uma cerveja mais elaborada não são as melhores possíveis. Estive e estou dentro de uma categoria de trabalhadores que não costumam ter muitas chance$ de apreciar algo muito além do que os hipermercados podem oferecer. Em suma, pra mim Baden Baden é um néctar. Pra quem já é conhecido até mesmo pelo nome pelo staff do Bolshoi, de repente, não. E não confunda isso que eu disse com rancor classista, por favor. É apenas uma fato, uma constatação.
A cerveja veio gelada no ponto ideal. Gostei muito disso: nada de sorvete, e tampouco de chá. Servida em baldes de gelo, o que me deixou ainda mais feliz. O bar transitava o serviço para o turno da noite, e na modorra do meio de tarde, um grupo de amigos bêbados esgoelava parte do repertório do DVD da dupla Jorge e Matheus, um tanto distantes de nossa mesa. Senti um leve desleixo no serviço e na organização do ambiente. Insisto que lavar copos de boteco deve ser um daqueles segredos de tribos no norte extremo das montanhas da Ásia Central, porque aqui em Goiânia ainda não vi um só lugar que me ofereça copos decentes pra começar a beber. Então, não vai ser por isso que vou maldizer a “galera do chapéu”. Outro sonho que tenho é ver as casas pequizeiras oferecerem copos mais adequados para tomar cerveja. Como produzir uma boa espuma e ainda preservar as propriedades do líquido em um copo sem curvatura própria para tal? Passo adiante esta pergunta.
No telão da área externa, um excelente programa de humor: jogo do Vila Nova, PFC. Tá certo, as coisas pra nós da Campininha não andam nada fáceis, mas há de se pesar as situações. Show de horrores, que não foi capaz de fazer meu corpo gastar nem a energia de virar a cadeira para assistir. Preferi os informes que chegavam pelos olhos angustiados de dois vilanovenses convictos, aliás, em pleno ato de contrição. Divertido.
A casa oferece uma excelente carta de cervejas. Só vi algo semelhante em raríssimos locais da capital. Entre nacionais e algumas importadas, há muitas opções para se beber bem. O cardápio não foge aos clássicos. Porções e pratos quentes de sempre, e me lembro de ter visto alguns risotos. Uma infinidade de clichês que agradam. O diferencial é mesmo a oferta de cerveja boa. Nem mesmo o ambiente, típico boteco goianiense, oferece um adendo. As instalações não são ruins, longe disso. Só não são “algo a mais”. Eu não gosto de dividir com outra pessoa o momento em que o efeito diurético da cerveja se manifesta. Logo, banheiros diminutos me deixam incomodado. Ficar espremido num momento tão narcisista como este é coisa degradante, e por isso sugiro ao bar que repense seu espaço de descarga de mercadoria consumida.
Tenho receio de ser injusto ao avaliar a cozinha de um lugar por apenas um prato ou dia. Há inúmeras variantes que podem atuar e causar desastres irreparáveis, afundando casas que se propuseram a atender um público minimamente exigente. Casos não faltam no folclore. Então, resolvemos ser razoáveis. Se estamos no Território da Picanha, por que não pedir um naco deste de boi? Feito. A Eisenbahn Pilsen é uma cerveja marcante, apesar de jovem no mercado. Prima por escolher muito bem os ingredientes. Aqui vai um comparativo para quem não é versado a pagar um pouquinho a mais por uma boa cerveja: perto da Devassa, a Eisenbahn parece cerveja importada. Excelente sabor: leve, mas imponente. É clara no copo, de espuma densa. E trocou figurinhas com o “X-Picanha” gigante que pedimos numa boa.
Eu explico o “X-Picanha”: mistureba atrapalhada de ingredientes, em uma chapa comum, dessas de pit-dogs. Mandioca em excesso, tomate com pele, semente e tudo mais, cebola, pimentão, e lá de vez em quando um teco de carne. Seria o caso de meu paladar ter corrido dali naquele justo momento, e eu ter me enganado quanto ao corte de carne que estava comendo? Improvável. Conheço o sabor de picanha, e sei quando como uma. Não foi o caso nesta feita. Tudo coberto por uma generosa camada de mussarela (a correção ortográfica do meu Word diz que é assim que se escreve). Daquelas comuns mesmo. Muito gostoso, mas de paladar grosseiro. Bom para acompanhar a cerveja, porém impróprio para o tamanho da responsabilidade. Uma boa cerveja exige um bom prato. Acreditei na possibilidade daquela “picanha” na chapa ser melhor executada. Comemos algo dispensável com uma boa cerveja. Reitero que estava bom, mas a Eisenbahn merecia mais. Senti que poderia ter pedido uma Antarctica mesmo.
Tudo é uma questão de referência, volto a dizer. A porção, de preço justo e tamanho certo, não deu conta da cerveja, mas isso foi minha impressão gustativa. Não vi meus companheiros abrindo sorrisos frente ao prato, por isso penso que não falo isso sozinho. Talvez mais capricho na execução da comida sirva para melhorá-la, um pouco menos de óleo, menos mandioca, e tomates limpos. Só aí, teríamos um enorme ganho.
Fomos informados que meu cartão de débito não seria aceito, por problemas técnicos na máquina, apenas na hora de acertar a conta e o serviço. Falha solene da casa. Não pagamos parte da conta naquele momento em nome dos direitos adquiridos no Código de Defesa do Consumidor. Bêbados sim, indiferentes à lei, nunca! E nem caloteiros: Guga pagou o restante no dia seguinte, depois que lhe repassei o dinheiro.
Beber com amigos deveria ser recomendado por médicos. Deveria ser prática de terapia. “Olha Astolfo, tô aqui te prescrevendo um porre semanal com o pessoal da repartição, certo? É certeza que assim, esse seu edema regride rápido”, diria o doutor. Com amigos de rock então, é cabeça boa garantida por toda a semana. Você que não é adepto, experimente. E se puder ser com cerveja boa, não abra mão. Vai por mim.