Itaquera, zona leste da capital paulista. Manhãs chuvosas de final de semana, de alguns dias perdidos no ano de 1985. Eu não me lembro do mês, e como chove metade do ano naquela cidade, essa referência climática acaba não ajudando.
Cena típica de convivência entre o proletário e sua dependência: sem nada para fazer, ambos iam ouvir música, a convite do pai. O disco, certa feita, foi um LP mix promocional, salvo engano da Som Livre, que existe até hoje na pequena coleção do velho metalúrgico. Trazia músicas de Tim Maia na fase mais FM, Belchior e Raul Seixas, quatro faixas de cada. O pequeno neto de imigrantes alemães, então contando com seus seis verões trancados em casa de bairro violento, gostava muito de uma música em especial: Trem das sete, interpretada por Raul. O então jovem operário fazia o gosto do herdeiro, indo direto para a faixa requerida, quando se atinham à audição daquela bolacha. Eu me lembro desta ser uma das atividades mais prazerosas que tive na minha infância: ouvir música no colo do meu pai.
Caía em velhos embustes para fazer rir meus tios que nos visitavam: certa vez, acreditei piamente que Tim Maia estava dentro das caixas de som de nosso antigo National, e por isso nós o ouvíamos. Plausível a explicação de como podíamos ouvir sua voz, para o moleque da casa. Depois de amplas gargalhadas na sala, entendi que o motivo de chiste ali era eu. Bons tempos, regados à Laranjinha do Bozo, com direito a canudinho especial, e ao sabor de Lolo, “o da vaquinha”.
E eu não imaginava que meu gosto musical estava sendo moldado ali. É certo que há tantas variantes na vida de um indivíduo, que fica impossível determinar que hoje ouço rock graças ao meu velho. Mas não poderia negar a influência, ao menos. Abandonei a mamadeira em meio a rodas de samba de raiz, outra paixão de meu pai. Estava sempre envolto em música, tendo um avô que além de ateu descendente de judeu fugitivo, era um exímio sanfoneiro. Conheço muitas músicas folclóricas teutônicas. Minha mãe é de origem mineira interiorana, então moda de viola nunca faltou naqueles três cômodos de bloco de concreto. E de tudo isso, escolhi o rock.
Meu pai tinha uma K-7 gravada de rádios, com inúmeros títulos que faziam as FM’s daqueles meados dos anos 80 ferverem. Ultraje a Rigor, Titãs, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Heróis da Resistência e afins. Eu gostava muito de “Ciúme”. Havia uma marca de biscoitos que tinham o formato de bonequinhos, naquela época. Brincávamos, meu velho e eu, de teatrinho sobre a menina da letra da música do Ultraje.
A coisa ficou séria quando nos mudamos para Goiânia: um belo dia, aos 11 anos, meu pai achou que era hora de encerrar o doutrinamento. Sentou comigo no quarto que servia aos três irmãos, onde repousava o velho National 3 em 1 estéreo e ritualizou a herança de alguns discos: compactos originais de edições nacionais dos Beatles, de 67 e 69 (que fiz o favor de enfiar onde sua imaginação quiser), um LP de clássicos do Bill Halley and his Comets, alguns discos do Raul Seixas e coletâneas de rádios paulistas, como Antena 1 e Jovem Pan. Ali começou a minha própria coleção. Dali para frente, eu escolheria o que ouvir.
É certo que o que veio depois assustou um pouco o coração de meu pai: um violão, mais tarde uma guitarra, um contrabaixo. Meu primeiro emprego veio depois que ouvi um sonoro não para a compra de uma Jennifer de braço esmaltado. Se não viesse por meio do suor daquele caldeireiro industrial, viria então pela petulância do jovem empacotador de supermercado, que desafiando a orientação paterna, começou a trabalhar aos 15 anos para sustentar o vício em discos, fitas e camisetas de rock.
Brigamos, nos ofendemos, quebramos vários paus, sempre mantendo a certeza da razão, tanto eu como ele – eu sempre certo, ele idem. Sou familiar? Sim, famílias só mudam de endereço. A fórmula é sempre a mesma. Desde Sócrates na Atenas antiga.
Eu aprendi em casa que homem cozinha sim, e bem. Que pode dominar uma vassoura com destreza, e desvendar os mistérios de uma máquina de lavar. Aprendi que ser machista em algumas situações é até charmoso, porque faz parte daquele antigo cavalheirismo cortês que anda tão em baixa. Feministas, me desculpem: meu pai é um lord neste quesito. E eu acho isso muito bonito. O arroz dele é muito melhor que o meu ou o da minha mãe. E se um metalúrgico rude e mal-encarado pode cozinhar, por que eu não? Muitos preconceitos estúpidos deixei de ter por isso.
O meu talento para dilapidar o patrimônio pessoal, gastando em prazeres que poderiam esperar, principalmente aqueles que envolvem meu paladar e minha gula, é sem dúvida uma marca registrada de meu pai. Lição aprendida com louvor, nos vários sufocos por que passamos em família.
Hoje, adulto, vacinado e produto direto do modus operandi de criação de filhos do “seu” Carlos. Espero com muita ansiedade um show do Ultraje à Rigor, antigo desejo de quem me apresentou o rock. Ainda devo essa ao homem.
Não quero pesar nada depreciativo hoje, em minha relação com meu pai. Reservei este momento para pensar somente na importância de sua intervenção em minha vida. Nossas desavenças de outros tempos, onde minha ingenuidade saltava à vista, e talvez por isso moldava-me tão intempestivo, guardei-as para outra hora. Afinal, este crédito existe.
Notícia de última hora: se você aprecia a Bohemia Escura, corra para o Pró-Brazilian mais próximo de sua casa. Na loja da Vila Nova, a long Neck sai hoje por R$ 1,99. Em tempo, não aprendi a beber com meu pai. Perto de mim, ele bebe como uma moça, hehehe...
Cena típica de convivência entre o proletário e sua dependência: sem nada para fazer, ambos iam ouvir música, a convite do pai. O disco, certa feita, foi um LP mix promocional, salvo engano da Som Livre, que existe até hoje na pequena coleção do velho metalúrgico. Trazia músicas de Tim Maia na fase mais FM, Belchior e Raul Seixas, quatro faixas de cada. O pequeno neto de imigrantes alemães, então contando com seus seis verões trancados em casa de bairro violento, gostava muito de uma música em especial: Trem das sete, interpretada por Raul. O então jovem operário fazia o gosto do herdeiro, indo direto para a faixa requerida, quando se atinham à audição daquela bolacha. Eu me lembro desta ser uma das atividades mais prazerosas que tive na minha infância: ouvir música no colo do meu pai.
Caía em velhos embustes para fazer rir meus tios que nos visitavam: certa vez, acreditei piamente que Tim Maia estava dentro das caixas de som de nosso antigo National, e por isso nós o ouvíamos. Plausível a explicação de como podíamos ouvir sua voz, para o moleque da casa. Depois de amplas gargalhadas na sala, entendi que o motivo de chiste ali era eu. Bons tempos, regados à Laranjinha do Bozo, com direito a canudinho especial, e ao sabor de Lolo, “o da vaquinha”.
E eu não imaginava que meu gosto musical estava sendo moldado ali. É certo que há tantas variantes na vida de um indivíduo, que fica impossível determinar que hoje ouço rock graças ao meu velho. Mas não poderia negar a influência, ao menos. Abandonei a mamadeira em meio a rodas de samba de raiz, outra paixão de meu pai. Estava sempre envolto em música, tendo um avô que além de ateu descendente de judeu fugitivo, era um exímio sanfoneiro. Conheço muitas músicas folclóricas teutônicas. Minha mãe é de origem mineira interiorana, então moda de viola nunca faltou naqueles três cômodos de bloco de concreto. E de tudo isso, escolhi o rock.
Meu pai tinha uma K-7 gravada de rádios, com inúmeros títulos que faziam as FM’s daqueles meados dos anos 80 ferverem. Ultraje a Rigor, Titãs, Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Heróis da Resistência e afins. Eu gostava muito de “Ciúme”. Havia uma marca de biscoitos que tinham o formato de bonequinhos, naquela época. Brincávamos, meu velho e eu, de teatrinho sobre a menina da letra da música do Ultraje.
A coisa ficou séria quando nos mudamos para Goiânia: um belo dia, aos 11 anos, meu pai achou que era hora de encerrar o doutrinamento. Sentou comigo no quarto que servia aos três irmãos, onde repousava o velho National 3 em 1 estéreo e ritualizou a herança de alguns discos: compactos originais de edições nacionais dos Beatles, de 67 e 69 (que fiz o favor de enfiar onde sua imaginação quiser), um LP de clássicos do Bill Halley and his Comets, alguns discos do Raul Seixas e coletâneas de rádios paulistas, como Antena 1 e Jovem Pan. Ali começou a minha própria coleção. Dali para frente, eu escolheria o que ouvir.
É certo que o que veio depois assustou um pouco o coração de meu pai: um violão, mais tarde uma guitarra, um contrabaixo. Meu primeiro emprego veio depois que ouvi um sonoro não para a compra de uma Jennifer de braço esmaltado. Se não viesse por meio do suor daquele caldeireiro industrial, viria então pela petulância do jovem empacotador de supermercado, que desafiando a orientação paterna, começou a trabalhar aos 15 anos para sustentar o vício em discos, fitas e camisetas de rock.
Brigamos, nos ofendemos, quebramos vários paus, sempre mantendo a certeza da razão, tanto eu como ele – eu sempre certo, ele idem. Sou familiar? Sim, famílias só mudam de endereço. A fórmula é sempre a mesma. Desde Sócrates na Atenas antiga.
Eu aprendi em casa que homem cozinha sim, e bem. Que pode dominar uma vassoura com destreza, e desvendar os mistérios de uma máquina de lavar. Aprendi que ser machista em algumas situações é até charmoso, porque faz parte daquele antigo cavalheirismo cortês que anda tão em baixa. Feministas, me desculpem: meu pai é um lord neste quesito. E eu acho isso muito bonito. O arroz dele é muito melhor que o meu ou o da minha mãe. E se um metalúrgico rude e mal-encarado pode cozinhar, por que eu não? Muitos preconceitos estúpidos deixei de ter por isso.
O meu talento para dilapidar o patrimônio pessoal, gastando em prazeres que poderiam esperar, principalmente aqueles que envolvem meu paladar e minha gula, é sem dúvida uma marca registrada de meu pai. Lição aprendida com louvor, nos vários sufocos por que passamos em família.
Hoje, adulto, vacinado e produto direto do modus operandi de criação de filhos do “seu” Carlos. Espero com muita ansiedade um show do Ultraje à Rigor, antigo desejo de quem me apresentou o rock. Ainda devo essa ao homem.
Não quero pesar nada depreciativo hoje, em minha relação com meu pai. Reservei este momento para pensar somente na importância de sua intervenção em minha vida. Nossas desavenças de outros tempos, onde minha ingenuidade saltava à vista, e talvez por isso moldava-me tão intempestivo, guardei-as para outra hora. Afinal, este crédito existe.
Notícia de última hora: se você aprecia a Bohemia Escura, corra para o Pró-Brazilian mais próximo de sua casa. Na loja da Vila Nova, a long Neck sai hoje por R$ 1,99. Em tempo, não aprendi a beber com meu pai. Perto de mim, ele bebe como uma moça, hehehe...
2 comentários:
Cara, que belo texto! Parabéns pela escolha das palavras e pelo sentimento que elas passam.
Faz parte do envelhecer, e digo isso por mim, aprender a olhar pra trás dessa maneira, valorizando os erros/acertos/caminhos/escolhas que nos ajudaram a ser quem somos.
Acompanho seu blog - que conheci na GRC/Orkut - por RSS e acabei lendo esse post pelo reader mesmo (por que, aqui, o texto está da mesma cor da página e não aparece).
Abraço!
Ótimo texto. E em relação a valorização, faço das palavras do cara de cima, as minhas. Além disso, gostaria de destacar a dispensável condição financeira para se ter uma família, muito bem mostrada por você. Pais que amam e educam bem seus filhos nunca serão substituídos por escolas caras e brinquedos de última geração.
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