29 de junho de 2011

A Xepa da memória

Ah, a memória e seu mecanismo de lembranças de conforto... Como é interessante reviver certas sensações guardadas por anos a fio. Esse é um dos assuntos que me fascina e sem dúvida gostaria de estudá-lo a fundo. Há um romance de Umberto Eco chamado A Misteriosa Chama da Rainha Loana que gira em torno deste tema tão instigante. Recomendo-o: um livreiro italiano perde a memória e volta ao lugar onde cresceu, uma pequena propriedade rural, como parte do tratamento para a sua amnésia completa. Lá, redescobre quem era através do prazer à mesa oferecido pela vida no campo na Itália e por estimular a mente com quinquilharias que colecionava quando menino. É de uma sensibilidade ímpar.

Esse friozinho que aportou em terras vermelhas de cerrado nos últimos dias produz em mim este efeito “memória de conforto”, lembrando-me dos invernos paulistanos da minha infância. Época que sugere comidas carinhosas, como uma boa sopa. Lembro-me de uma em especial: a xepa da geladeira. Na casa do operário metalúrgico meu pai, a fartura era alternada com épocas de aperto. Quem tem mais de 30 aí do outro lado da tela deve se lembrar dos congelamentos de preços e salários da maldita era Sarney. Faltava tudo no mercado. Isso também marcou minha infância. A senhora do torneiro-caldeireiro tinha que improvisar – alimentar a prole com o disponível no momento.

Um naco de carne importada da Europa do Leste, não importava o corte, ia pro caldo. Sim, o maior produtor de carne do planeta, o Brasil, já precisou importar carne, quando os produtores de gado de corte se negaram a entrar no tabelamento de preços imposto pelo governo. Faltava carne no mercado por dias a fio. E aquilo mais que servisse para entrar para a panela e derreter até virar sopa, ia junto. Uma belíssima sopa colorida, enfastiante, fumegante, no inverno seco e poluído de São Paulo. Restos da geladeira como jantar, almoço e jantar de novo, até o operário se virar. Essa era a rotina nos idos de 86/87.

A tradição das padarias paulistanas corre mundo. A padoca lá perto de casa era espetacular. Rio das Pedras padaria, confeitaria e lanchonete. O então jovem chefe de família, hoje senhor carrancudo meu velho, buscava lá uns pães para a sopa. A prole desgrudava da TV, onde acompanhava as peripécias de Daniel Azulay ou o intrépido Pirata do Espaço. Era a hora mais legal do dia, pois era a única que reunia todos ao redor da mesa. Jantávamos muito cedo, dormíamos muito cedo, pois a fábrica esperava seu torneiro às 8 da manhã. Morávamos em Itaquera, a Valmet Tratores ficava do outro lado de São Paulo, 3 horas de condução.

O sabor daquela sopa me vem à boca junto das lembranças na cabeça. Tudo o que foi possível para que pudéssemos viver decentemente foi feito por aquele casal proletário da periferia paulistana. Tenho uma saudade gostosa do perrengue. Não para sofrê-lo novamente, mas por ter sido responsável por quem sou hoje.

Criar as próprias memórias de casal proletário, pós-emersão da classe C. Essa é a meta de senhor e senhora Alemão nos dias de hoje. Linká-las ao passado não tão médio de nossos pais, para ressignificá-las. Eis aí uma coisa interessante: observar o processo de crescimento nas gerações familiares. Na minha família funciona, não sei na sua.

Para termos nossas próprias memórias familiares, quase explodimos uma panela de pressão. Recomendo que compre uma boa, e não essa porcaria que eu tenho aqui. Cozinhar ervilhas em grãos por uma hora e meia foi um ato de fé. Uma xícara servida. Diria eu uma e meia. Água pela metade e paciência quando a porra da válvula entupir. Vai dar tempo de picar a xepa da geladeira. Nas profundezas gélidas da minha Electrolux havia cará, inhame, abóbora menina e japonesa, batata, repolho roxo, cenoura, beterraba e pimentão verde. Foram juntos salsão, uma folhinha de coentro, cebolinha e uma cebola grande picada na vertical.

No meio tempo da ervilha, após ter cuidado da xepa, pique em cubinhos as sobras das carnes de receitas anteriores. Eu tinha peixinho e alcatra. Refogue-as bem temperadas com alho e cebola. Depois de bem fritas, jogue a xepa lá dentro. É obvio que a panela deve ser do tamanho da bunda da mulher melancia: GG Gigante. Refogue mais, misture a coisa toda, deixe o caldo da carne entremear a verdurada. Suas ervilhas já estão derretidas. Tire-as da panela de pressão, jogue no refogado, prove o sal. Ajeite tudo e deixe andar. Eu não posso comer pimenta devido ao meu tratamento de úlcera, mas deu uma vontade louca de sapecar alguma das várias que tenho aqui.

Vez ou outra vá mexendo, terapeuticamente. Se ficar grosso antes do total cozimento da rapaziada toda, acrescente moderadamente água e prove o tempero. Vá nessa procissão, até o negócio endireitar e ficar fantástico, te lembrando que um dia aquilo foi a única refeição possível dentro da sua casa. Acompanha um belo pão a seu gosto, logicamente salgado.

E sobre música, no próximo Rango Rock.

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